Nascida em Rosário Oeste, a 16 de outubro de 1927 no seio de uma família bastante humilde: seu pai, Marcelino de Almeida Ferreira, exerceu a profissão de marceneiro; sua mãe, dona Benedita Honorata de Almeida, a de costureira.
Em 1930, a família mudou-se para Cuiabá fixando residência na atual rua Joaquim Murtinho, numa casa cujos fundos davam-se com o Campo d’Ourique, antigo campo de enforcamento e praça de tourada da capital mato-grossense, onde depois foi erguida a sede do poder Legislativo mato-grossense e, atualmente, onde está instalada a Câmara Municipal de Cuiabá. Foi em Cuiabá que os pais conquistaram a estabilidade. Não se pode esquecer que neste mesmo ano, mudanças político-sociais transformaram o Brasil e Mato Grosso: a Revolução de 1930.
Suas primeiras fotografias datam de sua vida escolar a partir do secundário. Há poucas imagens de seus pais – pessoas importantes em sua vida, como ela relata sempre em suas memórias, mas de poucos recursos. Além de algumas imagens de sua juventude (infância e adolescência) em Cuiabá, retratando as transformações da cidade ocorridas em fins da década de 1930 e início da década de 1940. A maior parte de seu acervo diz respeito, no entanto, à sua vida acadêmica no Rio de Janeiro e à sua atuação profissional no campo da saúde. Este é o aspecto que mais parece causar orgulho à Adelaide de Almeida Orro: o seu pioneirismo enquanto enfermeira em Mato Grosso.
É certo afirmar que há uma grande semelhança entre a constituição de um acervo documental biográfico e uma autobiografia (GOMES, 2004, p. 10). Ao acumular e selecionar estes fragmentos de memória, ela constrói uma escrita de si. Neste sentido, as memórias escritas em dois cadernos que acompanham o acervo doado são apêndices que pretendem organizar e dar sentido à sua trajetória.
A autobiografia é característica do advento do indivíduo, no século XVIII, dotado de diretos civis e políticos, ao mesmo tempo uno e múltiplo – de identidade singular e múltiplas experiências e temporalidades. De um lado, a equidade moral, a igualdade civil – o indivíduo “abstrato” do pacto social; de outro, a liberdade, o indivíduo livre, que tem a possibilidade de uma multiplicidade de experiências. É o reconhecimento desta individualidade e a disponibilidade de recursos materiais que possibilitaram o registro ou acúmulo de sua memória. O que temos em mãos, portanto, não é mais o “grande” homem público, ou herói, a quem é permitido se deixar registrar na história por seus feitos excepcionais como o quis determinada historiografia contaminada pela ideologia positivista, mas a trajetória de uma mulher simples cuja trajetória reconhecida nessa memória tem valor para o campo da saúde.
Aqui também vale lembrar Pierre Bourdieu (2006, p. 185): “… tratar a vida como uma história, isto é, como um relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica…” O que o mestre francês chama de “ilusão biográfica” é a articulação entre o habitus (estruturas estruturadas; estruturas estruturantes) e um campo (a estrutura objetiva) (BOURDIEU, 2006, p. 190).
E se a trajetória (ou o “envelhecimento” social que caminha paralelo, mas independente ao envelhecimento biológico) da enfermeira Adelaide de Almeida Orro diz muito sobre suas experiências de vida: admissão ao Secundário no Colégio Estadual (atual Liceu Cuiabano “Maria de Arruda Müller”), em 1941, cuja mensalidade fora paga pelo Centro Operário de Cuiabá em que o pai era filiado; curso de Visitadora Sanitária do Centro de Saúde de Cuiabá, em junho de 1944, para que, a setembro do mesmo ano, sair a nomeação como visitadora interina, com efetivação em março de 1945; convite, em 1946, a pedido do governador Fernando Corrêa da Costa (convite estendido também a Adail Pontes que cursou na Escola “Alfredo Pinto”, na Praia Vermelha), para cursar enfermagem na então Capital Federal na Escola de Enfermagem “Anna Nery”, em Botafogo; presidência da Turma 49-I; Dama da Lâmpada; presidência do Grêmio Estudantil na Escola de Enfermagem “Ana Neri”; representante da Escola na União Nacional dos Estudantes (UNE); formatura, em maio de 1949, e retorno a Mato Grosso; criação, em 1952, do Curso de Auxiliar de Enfermagem “Dr. Mário Corrêa da Costa” – cuja direção recaiu sobre a enfermeira Edna Perri; nomeação o cargo de enfermeira do Ministério da Saúde, em outubro de 1955; casamento, em novembro de 1955, com Renato Gattass Orro; na década de 1970, professora da disciplina de Enfermagem em Saúde Pública no Curso de Tecnológo em Saneamento Ambiental na recém fundada Universidade Federal de Mato Grosso. No entanto, estas experiências dizem muito sobre o campo da Enfermagem no Brasil, e, mais especificamente, em Mato Grosso e suas disputas – cuja memória cristalizada neste acervo é o ponto de vista de um dos seus agentes.